quarta-feira, 8 de março de 2017

Encontro de Escritores (Última Notícia de Alcobaça)


Recordam-se vocês do bom tempo d’outrora,
Dum tempo que não volta mais
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em Junho os bandos de pardais?

- Esta quadra de Guerra Junqueiro, fez-me voltar aos tempos de Coimbra onde começavam, um pouco a medo, a chegar alguns conhecimentos sobre a história dos territórios do ultramar e do longínquo Japão de Wenceslau de Morais. Talvez se tivesse iniciado com Cadornega, Elias Alexandrino da Silva Correa, seguidos de outros, como António Enes, Mouzinho, Brito Camacho e por aí vai. Eu, insular, plantado quase a meio caminho entre a Europa e África não podia ficar indiferente. Bem mais tarde apareceram Castro Soromenho, Ralph Delgado, Alda Lara, Agostinho Neto, sobre Angola, Jorge Barbosa de Cabo Verde, Amilcar Cabral da Guiné, José Craveirinha de Moçambique e tantos outros que ficaria aqui a enumerá-los o resto do tempo que nos concederam.
Com sua barba hirsuta, branca, ar triste e cansado Wenceslau de Morais limita-se a dizer:
- Tokushima! Tokushima! E minhas amadas Ko-Haru e Ó-Yoné. Vivo agora com elas eternamente!
Cadornega, que sorrateiramente foi para Angola com 16 anos, para evitar a fúria da malfadada Inquisição:
- Vitorino! Não imaginas como foram complicados e difíceis aqueles primeiros anos em Angola! Enfrentar as sempre falsas populações do interior com quem queríamos simplesmente comerciar e levar a palavra de Cristo, lutar contra um clima insalubre e ainda ter que enfrentar os hereges holandeses! Não sei como consegui resistir tantos anos. E as guerras, sempre insanas, de parte a parte.
- Cadornega! Eu que nasci “americano-português” na Ilha de Santa Catarina, no Brasil também vivi uns largos anos em Angola, e deixei escrito o que lá vi e aprendi. Mas pouca gente sabe disso e pouca importância dão. Fui depois, cansado, acabar os meus dias na minha terra, mas sempre com uma estranha saudade de África!
- Como se admirar por isso, meu caro Elias Alexandrino? Vocês devem saber, que eu, jornalista, acabei por ser “obrigado” a ir para Moçambique, com a finalidade de pôr ordem no caos que por lá se vivia. Por um lado os nativos e, pior, os ingleses que nos queriam correr da Delagoa Bay, fornecendo armamento aos zulus para que eles corressem com os portugueses. Valeram-me aqueles homens da fibra dos que sempre fizeram história na nossa terra: Paiva Couceiro, Mouzinho, Ayres d’Ornelas, Caldas Xavier, Azevedo Coutinho e muitos outros. Pacificou-se – não totalmente – o país que pôde começar a progredir, e demos definitivamente o recado aos gulosos ingleses!
- António Enes! Antes dessas lutas e acordos de pacificação já nós, na companhia de Brito Capelo e Serpa Pinto, tínhamos corrido, a pé, a maioria do interior africano, ligando Angola a Moçambique. Tivémos nossas desavenças, o que considerámos normal, mas desbravámos parte dum mundo desconhecido da Europa. Hoje, se pudesse, repetiria a façanha!
- Queria ver hoje alguém repetir esse feito, Roberto Ivens.
Oliveira Martins, que pairava “guloso” entre tantos grupos sobre quem ele havia estudado e escrito, desde D. João I a Camões e às epopeias marítimas, ouvia entusiasmado os “africanos”. Pensava em Bernardo de Brito e suas Histórias Trágico Marítimas, nos trabalhos vividos por quem se aventurou por esses mares nunca dantes navegados, e cochichou com Joaquim Pedro Celestino Soares:
- Não acabaram as aventuras do mar no tempo das descobertas. Mas o teu livro “Quadros Navais” continuou a mostrar a valentia e determinação dos nossos marinheiros.
- Agora não há mais perigo, porque o Portugal glorioso e orgulhoso das suas marinhas, desde o grande rei Diniz, hoje quase nem barquinhos de pescadores tem. Tenho ouvido, que ainda há um português, vivo, que constantemente luta contra essa vergonha marítima e ninguém o ouve! Que tristeza.
- Eram simpáticas, sim as viagens de navio entre Portugal e Ultramar. E tempo houve em que as relações entre as populações nativas e os portugueses eram fáceis e agradáveis. Mas depois do Tratado de Berlim tudo se complicou. Apesar disso manteve-se uma união que poderia ter sido mais um caminho para a concretização do 5º Império, como tão bem, ultimamente frisou Agostinho da Silva. Até eu que fui estudar para Portugal, porque era um pouco “a nossa terra”, acabei perseguido por tentar valorizar os povos da minha terra, e fui obrigado a pegar em armas contra um governo cego, covarde e mudo.
- Antes de ti, Agostinho Neto, comecei eu também a ficar mal visto por ter escrito o que vi e vivi em Angola e tive também de ir embora, para onde não me incomodassem. Infelizmente não tive o prazer de assistir à Independência dessa terra para onde fui acabado de nascer.
- Soromenho, até hoje o teu nome é respeitado. Tu foste um percursor da literatura “de dentro para fora”! Cantaste a triste vida do angolano pobre, como era maltratado, e isso desagradou às governanças, mas fez escola. Eu chorei a vida triste dos segregados. Nasci em Benguela, uma cidade com convívio especial mas, ainda assim com imensas desigualdades. Tentei lutar com a minha poesia. “E apesar de tudo, Ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África!” Usando até metáforas para chamar a atenção, como “À prostituta mais nova Do bairro mais velho e escuro, Deixo os meus brincos, lavrados Em cristal, límpido e puro...”
- Alda! Alda! Como chorámos, todos, quando nos deixaste. Não havia uma só boca, independente da cor de suas peles que não cantasse os teus poemas, muitos deles a quem entretanto corriam lágrimas pela cara! Não só pela beleza da poesia como pela consciência da mensagem que transmitia.
- Meu irmão! Talvez o maior sonhador que Angola terá conhecido! O Antero de Quental de Benguela dos quintalões, sempre à procura daquilo que só encontramos quando deixamos a nossa carne entregue à Terra que nos viu nascer. Em todos os que conheceste deixaste um amigo, um admirador e... até um quanto de inveja em cada um deles por te verem alegre e triste, descontraído e preocupado mas sempre com uma palavra de esperança para todos.
- Eu que o diga, que te conheci bem, bebi dos teus pensamentos, do grande Tomaz Vieira da Cruz, aprendi a conhecer o Sul de Angola com os trabalhos do Padre Carlos Estermann, saboreei os contos do humilde Oscar Ribas, e entusiasmei-me completamente com uma simples “ordem” do Rui de Noronha que lá de Moçambique nos deu o caminho: “África, surge et ambula”! E quanto mais me entusiasmava mais me perseguiam e acabei, com a “ordem existente”, por perder alguns amigos, como o José Luandino que passou quase treze anos atrás das grades! Foi quando aproveitou para escrever. E que bem escreveu! Ganhou um duplo prémio! O Prémio da Melhor Novela, pelo livro Luuanda, que lhe atribuiu a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, quando estava preso, e o gozo que lhe terá dado ver que esse prémio provocou um tremendo pavor e confusão no covarde governo que até, tão ridiculamente, proibiu que os jornais divulgassem o prémio ganho por um presidiário!
- Tão caricata a atuação do Governo que logo extinguiu essa Sociedade de Autores. Lembras bem disso, com certeza, Mário de Andrade! Eu sempre tive presente um pequeno poema do cabo-verdiano Jorge Barbosa que, sobretudo nos Estados Unidos continua a ser como notícia, revoltante:

“Ocorrência em Birmingham”
John 
de Birmingham, Alabama, USA
entrou na tabacaria.
Foi insultado
soqueado
expulso.
Na rua
o polícia
espancou
derrubou
cuspiu
prendeu o desordeiro.
Negro safado!

Coisas parecidas presenciei, sempre que um idiota se julgava superior. Fui para Lisboa onde estudei agronomia, e o que é curioso é que lá me dava bem como todos os colegas. Quando regressei à Guiné é que vi que não podíamos continuar a ser assim tratados.
- Amilcar Cabral, foste um exemplo, e sempre admirado. Malditos para sempre os que te mataram fazendo crer que foram os portugueses. Bem dizias tu: “Se alguém me há de fazer mal, é quem está aqui entre nós”. Apesar de estares a comandar a luta armada, a tua morte, em Portugal foi sentida.
- Hoje, lá onde estamos não há amigos ou inimigos, mas deixa-me tratar-me por amigo, José Craveirinha. Tu, filho dum humilde e bom português que sempre foi um simples operário em Moçambique, que “nasceste a primeira vez em 28 de Maio de 1922 entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Num bairro de pobres”, e que lutaste entre duas pátrias, pai e mãe que sempre se amaram, e assim desde cedo viste que a cor da pele só encobre os corações. Com razão és conhecido como o maior poeta de Moçambique.
- Contigo aprendi a amar ainda mais este país, e do mesmo modo sem conseguir conviver em paz entre o novo Moçambique e o velho Portugal.
- O mesmo comigo Rui Knopfli. Nasci no velho Portugal, saí de lá menino, voltei para cursar Belas Artes. Mas logo regressei a Angola que já considerava a minha terra. Não creio que alguém possa passar incólume por África. A paixão pelas belezas naturais, sobretudo pelo seu povo, amável, bonito, acolhedor. Senti-o e vivi essa paixão em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e São Tomé e até Brasil, pela pintura e pela poesia. Eu, que no fundo não era mais do que um pintor, me atrevi com a poesia, inspirado em tantos amigos, alguns dos quais não tive oportunidade de conhecer, mas que lia com avidez.
Entretanto São Pedro fazia chegar aos ouvidos do organizador do Encontro que era preciso desocupar o refeitório. Estava quase na hora dos monges irem tomar a sua primeira refeição da manhã, e não podiam descobrir aquela “festa”.
Há muito, uns quantos convidados já se haviam retirado, a começar pelo velho Rei Afonso X. A animação agora estava em África, e pelas caras de todos via-se que ficariam ali... eternamente.
Neves e Sousa, “ouviu” também o chamado de São Pedro e pediu para terminar o Encontro, que considerou uma das grandes dádivas do Céu, com dois pequenos poemas que o levavam, como a todos os outros a se embalaram na música suave dos povos de África.
- Deixem-me terminar este nosso fantástico Encontro com uns pequenos poemas a começar por este do Grande Tomaz Vieira da Cruz, que até música tem:

Quissange - Saudade Negra
Não sei, por estas noites tropicais,
o que me encanta...
Se é o luar que canta
ou a floresta aos ais.
Não sei, não sei, aqui neste sertão
de música dolorosa
qual é a voz que chora
e chega ao coração...
Qual o som que aflora
dos lábios da noite misteriosa!
Sei apenas, e isso é que importa,
que a tua voz, dolente e quase morta,
já mal a escuto, por andar ausente,
já mal escuto a tua voz dolente...
Dolente, a tua voz "luena",
lá do distante Moxico,
que disponho e crucifico
nesta amargura morena...
Que é o destino selvagem
duma canção em que tange,
por entre a floresta virgem
o meu saudoso "Quissange".
Quissange, fatalidade
deste meu triste destino...
Quissange, negra saudade
do teu olhar diamantino.
Quissange, lira gentia,
cantando o sol e o luar,
e chorando a nostalgia
do sertão, por sobre o mar.
Indo mares fora, mares bravos,
em noite primaveril
acompanhando os escravos
que morreram no Brasil.
Não sei, não sei,
neste verão infinito,
a razão de tanto grito...
-Se és tu, oh morte, morrei!
Mas deixa a vida que tange,
exaltando as amarguras,
e as mais tristes desventuras
do meu amado Quissange!

E da nossa África negra, que procurámos cantar e pintar, uma saudação de Mário de Andrade:
Minha avó negra, de panos escuros
da cor do carvão
Minha avó negra, de panos escuros
que nunca mais deixou.
Andas de luto.
Toda é tristeza

De repente o refeitório ficou vazio!

Francisco Gomes de Amorim 

18/01/2017

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