quarta-feira, 29 de março de 2017

Vivências


José Flórido

     Antigamente, havia Cafés que eram verdadeiros centros de convívio. Alguns eram mesmo autênticas Universidades livres, como o Café Colonial, nos Anjos, que eu considerava uma espécie de dependência da minha casa. Quando saía, muitas vezes cansado e pesaroso do meu emprego, ou mesmo depois de já ter jantado, encontrava sempre ali um refúgio mágico, uma convivência cordial de estudantes, de professores, de escritores e de jornalistas. E, dentre os mais assíduos, saliento as figuras que pontificavam pelo saber e pela experiência: O José Marinho, pensador platónico, saudosista e metafísico, e o Álvaro Ribeiro, filósofo de fundo aristotélico. Mas havia mais: o António Quadros, o Orlando Vitorino, o Jorge Preto, o António Telmo, o Luís Espírito Santo, o Fernando Sylvan, o António Braz Teixeira, a Ana Hatherly, a Natália Correia, o Luís Furtado, o Fernando Vasconcelos, o Luís Zuzarte, o Alberto Gonçalves... E apareciam também, de vez em quando, o Delfim Santos e o Sant' Anna Dionísio... E, foi a partir de quase todos estes pensadores que se criaram dois órgãos de divulgação literária: O "57" e, mais tarde, a revista "Espiral". 

    Quando nesses convívios o diálogo não atingia sempre o mesmo nível e parecia declinar, aproximando-se da superficialidade ou mesmo da mediocridade, o José Marinho dizia, com um sorriso irónico: "Isto, nem sempre pescada, nem sempre sardinha..." . Dele, recordo a sua presença de Mestre e reavivo a gratidão de ter sido por seu intermédio que tive o privilégio de conhecer Agostinho da Silva. Dele, recordo também a sua "Teoria do Ser e da Verdade", livro tão laboriosamente e demoradamente escrito, sobre o qual quis também apresentar uma leitura. E memorizei mesmo, até ao dia de hoje,  o parágrafo inicial, não porque disponha de uma memória acima do normal, mas porque aquelas palavras, genialmente alinhadas, que o compunham eram, por todos nós, repassadas inúmeras vezes: "Aquele a quem foi dado ser plenamente como a quem e negado todo o parcial ser e, no ver do que é, infinitamente ultrapassa todo o ver e saber finito, esse, no mesmo instante em que frui a mais pura alegria, sabe para sempre toda a verdade."

     
O Marinho, como quase toda aquela gente que o acompanhava, amava muito (ou mesmo em demasia) as palavras e, por isso, tentava "dizer o indizível". Considerava esse primeiro parágrafo a sua "coroa de glória", que era talvez a síntese e a perceção de tudo o que seria desenvolvido posteriormente. E quando, certo dia, lhe telefonei a dizer que o interpretara como expressão da "Parábola do Filho pródigo", ficou muito interessado e quis imediatamente falar sobre esse assunto. Encontrámo-nos então num Café próximo do local onde residia e, algum tempo depois de iniciada a conversa, declarou: "Quando você me apresentou o sua interpretação pelo telefone, pensei para comigo mesmo: "Estás completamente a leste... Mas, agora vejo que foi mais longe do que eu pensava... e acho até que a sua leitura é muito interessante. Veja lá se me ajuda a perceber este livro!" Ora, este pedido de auxílio do autor para a compreensão de um livro, por ele próprio escrito, é quase um fenómeno hilariante. Contudo, justifica-se, se conhecermos a natureza e a dimensão do seu pensamento: José Marinho sempre me pareceu acreditar que aquilo que escrevia estava acima da sua condição humana. Tudo lhe era, de certo modo, revelado, sendo ele apenas um intermediário consciente dessa revelação. Mas, a conversa não se fixou demoradamente nesse assunto. Derivámos para o Fernando Pessoa e para o Teixeira de Pascoais, que eram os Poetas relevantes da "Filosofia Portuguesa". O Marinho era "Pascoalino". Tinha sido amigo de Pascoais e nutria por ele uma admiração quase sobrenatural. E sempre que confrontava Pessoa com Pascoais, ponderava: "Pessoa "pessoliza" a Poesia; Pascoais deixa-se atravessar por ela..." E já no fim do nosso encontro,declarou: "Você soube demasiadamente cedo certas coisas... E agora tem de sofrer as consequências...".  Mas, só muitos anos depois, consegui compreender as "consequências" a que o Marinho se estava a referir. É que tem de haver um tempo para tudo... e se nos antecipamos, quase sempre temos de pagar, mais tarde, a fatura da nossa antecipação.

     Do Álvaro Ribeiro não tenho uma recordação tão precisa. Mas nunca esqueci o facto de, certo dia, me ter advertido pela irreverência da minha juventude. Imaturamente, queria emitir opiniões sobre todos os assuntos, antes de, primeiramente, aprender a pensar e a escutar os mais sábios e os mais experientes. Hoje, dou-lhe razão. E, por isso, sempre tentei fazer ver aos meus alunos o quanto é precioso ser recetivo, antes de se ser prematuramente, e precipitadamente, emissivo, embora reconheça que a mais importante aprendizagem é, não a de escutarmos os outros, mas a de nos "escutarmos a nós próprios", ouvindo a voz do nosso Mestre interior. É nisso que consiste realmente o despertar da "Intuição", palavra que significa propriamente, e de acordo com o seu étimo, "ouvir de dentro".

      Mas foi, como já referi, o José Marinho que me apresentou o Agostinho da Silva. Para isso, convidou-me para assistir e tomar parte numas conferências que se realizavam no IADE, cujo diretor, segundo creio, era o Lima de Freitas. No dia aprazado,  vi entrar na sala um homem modestíssimo, quase um campónio, mas irradiando uma fascinante serenidade. Era o Agostinho. Cumprimentou as pessoas presentes e, depois, dirigindo-se a mim, perguntou: "E este senhor, quem é?" O Marinho fez a apresentação. E o Agostinho da Silva, que não me conhecia de lado algum (nem eu a ele), declarou com um sorriso imensamente franco: Tem graça... era mesmo consigo que eu queria falar..."

in, http://joseflorido.weebly.com/textos/vivencias
3/15/2017

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