domingo, 31 de março de 2013





Foto: Manuel João Croca


NA PÁSCOA


E foi assim que se passou.
Sentir uma vontade danada de ir ao encontro da natureza na sua forma mais pura – aquela em que a mão do homem ainda lhe não alterou a geografia original – sem pensar sequer no risco de se perder.
Sentir, e ir.

Saltar uma – ou a - cerca (as terras agora estão quase todas cercadas), e embrenhar-se pelo tapete verde que almofada o montado e sentir o verde, a imensidão daquela atmosfera verde.
Ouvir o som da água a correr caudalosa lá em baixo e aspirar o cheiro que sobe, evolando-se,  espargindo tudo. Observar os regos de água cruzando o montado numa maturação de humidade. As flores desabrochando em todos os tons, coelhos correndo espantados pelo invasor desconhecido, e o mistério da vida revelando-se na sua essência primordial sob a forma de uma onda de fecunda harmonia.

Quadros que poderiam ser transportados de épocas ancestrais, ainda não violados pela artificial fragmentação do tempo que marca o ritmo das nossas urbes, clones de outras urbes, de outras urbes, catedrais de consumos e artificialidades.
Tudo ali parecendo feito na hora, revelações apenas desfrutadas na medida em que se alarga o horizonte visual.
Uma eterna e renovada revelação.
Metamorfose ao ritmo das estações, dos dias e das horas sem introdução de mecânica artificial que permita a prepotente manipulação da expressão do tempo representado em directo.

Por isso, ali se sente o franquear de um santuário verdadeiro e se pode ouvir o que um Cristo fala, exaltação de uma verdade que já se não aprende nos livros – pois que está antes ou depois deles -, e que, na natural e estimulada contraposição aos propósitos e ritmos com que ocupamos os dias, nos confronta com uma praxis que conduz a um futuro inevitável, mas de que se regressa sem saudades, antes assombrados pela visão do que se não gosta mas nos é imposto pelo sentido da deriva colectiva.

A roda da história dirão, a roda da história dirá, porque um só homem não desenha ou contém o curso da diáspora colectiva ainda que a mesma possa ser refém de um olhar alienado e superficial, que se afasta do bom senso que indica que a um exterior corresponde um interior por vezes muito mais intricado do que a instantânea leitura da revelação a preto e branco sugerida por uma fotografia.

E é já como num lamento e sentimento de impotência que clama: “olhai os lírios do campo”, na expectativa irrealizável de que tal bastasse para que o homem se sentisse saciado.

Mas não, a percepção dessa paz e harmonia leva-o a procurar coisas, sempre mais coisas, de que se possa apropriar de forma privada, e pretendendo exclusiva, na tentativa de as recriar e tornar permanentes sem discernir, ainda, que o que procura não está nas coisas, antes em si, e na viagem que conseguir realizar com e no Mundo.

Manuel João Croca




Foto: Edgar Cantante

sábado, 30 de março de 2013

Os caminhos do espírito


A Mística Espanhola:
São João da Cruz (1542-1591)


Constitui uma das grandes referências da espiritualidade cristã. "A Subida do Monte Carmelo", obra fundamental de São João da Cruz, é um comentário do autor aos seus próprios poemas.

Só por graça de Deus a vida humana pode chegar a uma vida divinizada. Só isso é a salvação.
A condição essencial para a união com Deus é o "desapego" e a liberdade de espírito. Deus é o centro da alma que está no íntimo de cada homem. O problema é que o homem dá mais atenção às coisas exteriores do que à fonte de si mesmo.

São João da Cruz dirige-se particularmente aos que estão dispostos a abdicar dos seus desejos e vontades. Para ele, o caminho constitui-se por três níveis diferentes:
1- Os principiantes (a via purgativa, os primeiros sinais de Deus);
2- Os aproveitados/contemplativos (a via iluminativa, começam a haver "notícias" de Deus;
3- Os perfeitos (a via unitiva, atingem um grau avançado na união com a divindade).

Neste caminho o homem tem de passar por duas "noites escuras": uma dos sentidos e uma do espírito, ambas compreendendo uma fase ativa (conduzida pelo próprio) e uma fase passiva (conduzida por Deus). Para passar pelas "noites escuras" é necessário um sentimento de fé, de confiança no caminho, pois que as vantagens não se vislumbram imediatamente.

Na fase dos sentidos tem de haver um "desapego" das coisas, se bem que isso não implique necessariamente duma abdicação dos objetos (bens). A satisfação dada por esses bens substitui um sentimento de algo mais profundo. Quanto menos coisas houver na alma (aqui equivalente a mente, consciência), mais a luz divina nela brilha.

A proposta é, portanto, em vez de acumular bens ou conhecimentos, há que se esvaziar, ficar sem nada. A santidade não tem a ver com intelectualidade, antes, é um estado de realização do ser.

Face a estas ideias, um reconhecido problema do ensino atual, é a aposta numa extrema intelectualização, no quase exclusivo desenvolvimento mental, em vez de um desenvolvimento integral. Hoje fomenta-se demasiadamente a tecnicidade e o especialismo - homens muito inteligentes, mas pouco humanos.

Deus tanto está no prazer como no sofrimento. Independentemente de se estar alegre ou triste, bem ou mal, a alma deve estar em paz para que esse sentimento de Unidade seja possível.

Carlos Rodrigues

Referência Bibliográfica:
BORGES, Paulo, Seminário de Filosofia da Religião, Faculdade de Letras da universidade de Lisboa, 2011/2012, 2º semestre.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Comunicação Social miserabilista


Informação que apela à Lágrima e ao Sentimento

António Justo

Acabo de regressar de Portugal com uma certa melancolia pela beleza e riqueza dum país que sofre no corpo e na alma como um canino amarrado a uma casota de raposas e predadores. O medo e a raiva assolam um povo a viver cada vez mais na rua, sem poder entrar em casa.

O povo ainda anda de pé mas é conduzido pela mão da Troika e de instalados nas diferentes administrações e representações que o conduzem docemente ao curral dos senhores. Muitas pessoas “vivem da mão para a boca” e muitas outras na angústia/revolta perante um Estado que cada vez interfere mais negativamente na sua vida. Apesar da presença de personalidades sociais responsáveis a dignidade humana cada vez é mais ultrajada.

Fomenta-se uma mentalidade mafiosa que, a nível de discussão pública, deita achas para a fogueira duma emotividade que ofusca a razão com o fumo de sentimentos difusos que vão da raiva ao desespero e da inveja ao racismo. Um Estado sem rumo próprio segue uma política subterrânea jacobina que ganhou especial expressão em Portugal com as invasões francesas e com o republicanismo.

A luz do sol e a alegria de viver encontram-se cada vez mais ensombrados. A falta de esperança leva a dormir e torna-se motivo do não viver.

A grande cultura lusa sofre e é depauperada por uma Comunicação Social que fomenta o miserabilismo popular e a leviandade de muitos comentadores cínicos e convencidos que se aproveitam dum certo voyeurismo e de opiniões entumecidas como se opinião e realidade fossem a mesma coisa.

Muitos locutores do dia-a-dia agarrados às banalidades noticiosas bombardeiam o povo com ideias, imagens e sentimentos repetitivos lisonjeadores de amigos e desrespeitadores de inimigos. Fomenta-se um pessimismo amedrontador que inibe a própria iniciativa e o espírito de investimento.

Como sanguessugas, até os meios de comunicação social nacionais se fixam no negativismo de notícias dirigidas ao sentimento. Quando alguém se enforca logo se juntam os leões e as hienas à volta de imagens e ideias que fomentam a imitação. A TV pública fala de suicídios do foro privado e faz render o peixe, como se se tratasse de suicídios de motivação política realizados dentro da sala do Parlamento. Cultiva-se o extremismo emocional e um voyeurismo que se alonga nos telejornais até às profundezas dos canais de rádio. As coisas são repetidas até à exaustão.   

Observam-se controlos da ASAE a restaurantes e empresas como se fossem mandatados por estrangeirados sem consciência pela realidade local com um comportamento anti-regionalista ao serviço de interesses centralistas anónimos e antinacionais.

Um sistema político servidor de interesses individuais e partidários a nível nacional e de autarquias continua a servir o compadrio da avalanche dos arrivistas criando postos de trabalho na administração quando não há trabalho suficiente para os já empregados. Uma mafia de rosto lavado dos lugares cimeiros de Câmaras e administrações procura desestabilizar os seus subordinados criando um clima de medo, desconfiança e intriga entre os empregados.

Arrasta-se o povo para um pessimismo medroso e amedrontador. Num ambiente de tudo contra todos, tudo tem razão, predadores e subjugados; só uma coisa falta: a consciência de responsabilidade nacional.

A contestação social mais que objectiva, é, muitas vezes, manipulada por grupos que vivem de mordomias à custa do povo, sejam eles representantes dos trabalhadores ou dos senhores. Um exemplo disto foi a última greve ferroviária que pretende manter bilhetes gratuitos para os familiares dos empregados. Naturalmente que todos os grupos têm direito a defenderem os próprios interesses; o dilema de Portugal é encontrar-se nas mãos duma esquerda intransigente e de senhores e capitalistas sem alma social nem nacional.

O último sintoma do estado doentio grave e depravado de quem tem o dizer em Portugal, foi o facto José Sócrates, que deveria estar sob observação judicial, aparecer como candidato a comentador político nos canais da TV pública. Um atrevimento que bradaria aos céus numa sociedade normal! A tal falta de discernimento chegou um povo! A honra dos predadores é legitimada com a desonra da nação. Os interesses partidários afirmam-se mafiosamente sem que haja oposição qualificada. Com esta iniciativa, José Sócrates pretendia aproveitar-se da lorpice da Comunicação Social para se preparar para as presidenciais.

No meu belo e inocente país os predadores são os senhores!

António da Cunha Duarte Justo

quinta-feira, 28 de março de 2013

D'ARTE - CONVERSAS NA GALERIA (2ª. SÉRIE)

CASAS VISTAS DE UMA ELEVAÇÃO
 


LUÍS DELGADO

Óleo sobre MDF, 61 x 81

 

quarta-feira, 27 de março de 2013



Cascais 3

Estavas na página da primavera
hoje de madrugada, mulata do comboio
das 5,38h como um falo na linha
o mar ao fundo sem sol

caminhamos ainda de estação em estação
trazias tudo o que a noite esconde e falamos
de beringelas e limão bem junto ao corpo

entre as janelas das carruagens espelha-se
o teu rosto de romã para os meus mueselis
de ternura e leite

saberemos um dia como começar a primavera
um sol largo nas velas dos navios
onde a baía é o teu colo de Cascais



terça-feira, 26 de março de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



E aqui está a força de um regime que não só não hesita em reprimir qualquer opositor, como, pela forma como reage às situações em que vê a sua legitimidade posta em causa, dá mostras de estar de pedra e cal, pelo menos, quanto a mim, enquanto Salazar for vivo. Continuo a pensar e os últimos desenvolvimentos apenas contribuem para reforçar essa convicção, houve uma grande ingenuidade da parte dos homens da oposição no modo como até pareceram estar convencidos que uma hipotética eleição do General Delgado para a presidência da república poderia levar a uma alteração e mesmo ao fim da actual situação. E a verdade é que a resposta não se fez esperar, a começar pela onda de prisões que se seguiu que foi de tal maneira avassaladora que levou à frente tudo e todos, incluindo aqueles que nenhum papel desempenharam para lá de terem mostrado o seu apoio e, entre aqueles que têm acesso ao voto, naturalmente o escolheram no boletim daquele acto eleitoral. Não contentes com uma tal violência que silenciou uma boa parte das vozes dissidentes, não se inibiram os nossos dirigentes em demitir a alta patente militar das suas funções e, não fosse o homem ter conseguido refúgio numa embaixada, em Lisboa, em vez do exílio no Brasil, para onde veio a seguir não sem antes um certo escândalo, estaria também ele agora atrás das grades e seguramente sujeito às mesmas humilhações e espancamentos que os seus apoiantes e os restantes prisioneiros políticos, em geral, sofreram. E foi este o resultado e o desfecho do sonho de uma alteração política no sentido da democracia, no país: repressão a rodos e o reforço do regime repressor. Que mais poderá agora fazer o General, só e distante, sem qualquer meio para intervir no quotidiano da sociedade portuguesa? E se são dias conturbados os que vamos vivendo, com o nosso império colonial sob a tensão das independências asiáticas e africanas e cada vez mais confrontado com as reivindicações da União Indiana sobre o Estado Português da Índia que há pouco viu os enclaves de Nagar Aveli e Dadrá ocupados por manifestações de pro-independentistas ou, para ser mais precisa, adeptos da integração naquele novo e imenso país que no fim da década passada se separou da coroa britânica. Não sei como virá a ser resolvido aquele problema e portanto não serei capaz de adivinhar se no fim serão os indianos ou os portugueses a ganhar. Uma coisa me parece evidente; Portugal não tem qualquer possibilidade de se defender de uma invasão e ocupação militar, mas não deixa de ser verdadeiro que as nossas autoridades têm sabido manusear o direito internacional para protelarem o mais possível, para não dizer evitarem tal acontecimento e, com efeito, têm conseguido dar conta do recado, pelo menos até ao momento. Até por não ser muito difícil de perceber que disso dependeria, em última instância, a manutenção de todos os territórios ultramarinos e, consequente e eventualmente, a própria sobrevivência do regime. A anexação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana abriria de certeza um precedente que rapidamente viria a ter repercussões nas colónias africanas, assim como em Macau e Timor que, respectivamente, a China comunista e a recém-independente Indonésia não deixarão de querer para si. Daí a minha descrença quanto às possibilidades de mudanças políticas pelas vias que tradicionalmente a oposição tem utilizado. Compreendo a raiva e a revolta, até o ódio com que o senhor Abel saiu desta prisão que sofreu. Duvido no entanto que as ideias que expressou aqui há uns dias sejam minimamente plausíveis. Honestamente creio que decorreram mais do sentimento de impotência que se tem apoderado de todos nós e dele, em particular, ainda que isso não admita, que de uma qualquer leitura razoável da realidade nacional. Bem, só espero que o meu querido amigo não cometa uma qualquer asneira grave por causa disso. Seja como for, não me parece que tenha alguma razão quando defende a ideia de que só através de um golpe militar será possível derrubar o Estado Novo e instaurar um poder democrático. Sinceramente não vejo como. Afinal já houveram tantos levantamentos e todos foram tão facilmente aniquilados e os responsáveis presos… Teria que haver um consenso de tal maneira alargado nas tropas, coisa que não parece existir, pois só dessa forma poderiam os revoltosos lograrem os seus intentos sem mergulharem o país numa guerra civil que só por fantasia pode alguém aspirar a conseguir o bom sucesso de uma operação como essa. E a grande verdade é que todas as tentativas até aqui falharam justamente por em nenhuma ocasião se ter atingido essa condição prévia de unanimidade entre as altas patentes. Aliás, dificilmente poderia ser de outro jeito uma vez que as forças armadas são, elas próprias, um dos pilares mais sólidos do regime. Depois acho que o próprio povo não está preparado para se erguer em massa contra a situação e com isso forçar a abertura do actual estado das coisas. A maioria dos portugueses permanece pobre e, pela ignorância, privada de meios para se organizar com o dito propósito e depois, apesar de tudo, temos de reconhecer que a nossa economia começa a dar sinais de desenvolvimento que hão-de produzir efeitos benéficos a prazo que, em conjunto com a emigração cada vez mais numerosa para alguns países europeus, acabará por trazer o pão às barriguinhas e o conforto aos corpos que, no fim de contas, sempre é e será o mais importante para a larguíssima maioria das pessoas. Assim, também por este lado vejo como muito pouco provável uma qualquer alteração da estrutura do poder em Portugal num horizonte próximo. Por muito que nos custe, por muito que me custe admitir, isto é o que penso, é este o pessimismo que me consome, embora esteja pronta a aceitar que bem pode haver aqui um dedinho próprio da idade e certamente pelo efeito daquilo que sucedeu ao Manuel, a malvadez por que passou, também.
O meu amor é que anda triste desde que os pides o libertaram, aí uma bem contada dúzia de dias depois de o terem prendido sem qualquer motivo consistente e plausível. Tudo aponta para que tenha preferido nunca falar daquilo que terá passado, como tem sido a regra desde que regressou a casa, mas desde então ficou taciturno, deixou de o acompanhar aquele ar alegre que, mesmo em períodos de fadiga próxima da exaustão, sempre transmite a certeza que por mais fortes que sejam as rajadas, há ali um corpo e ânimo para lhes fazer frente. E custa-me ver que os seus olhos perderam ou, pelo menos, ainda não recuperaram aquele brilho característico de um homem tranquilo e feliz. Tenho-lhe dado tantos carinhos, tenho-me entregado tanto nos seus braços sem que a mais leve chama se lhe tenha suscitado no peito e de certeza na alma. O que fizeram do meu amor que por isso sofre e definha em frente do olhar incrédulo dos nossos filhos? É isto que os criminosos que sustentam um regime de bestas fazem a um homem.
Como eu compreendo a revolta do senhor Abel e como eu gostaria que tivesse razão naquilo que diz.

segunda-feira, 25 de março de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (21)

O Velho que Fazia Cestos, Autor António Tapadinhas, 
Tinta da China s/papel CANSON, 32x24 cm

O VELHO QUE FAZIA CESTOS

Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.       
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam  pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o  coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
“Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?”
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: “Soltem-no!”.
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:
-“ A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco Euros. Por favor, compre duas latas de comida para a minha cadela.”
Ouviram, senhores Médicos, Juizes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!

domingo, 24 de março de 2013




UMA TERRA ASSIM, QUE FELICIDADE.


Pintura de Luís Delgado


Aqui há dias, a Fernanda Gil solicitava-me, como a várias outras pessoas, para um comentário acerca da Alhos Vedros-TV. Há pessoas a que, pela consideração que nos merecem, não gostamos de dizer não. Assim sendo, e depois de visitar o site, predispus-me ao acto e registei o seguinte:

Vi, agora e na totalidade, duas reportagens.
A do Carnaval e a do Dia da Marinha do Tejo.
As reportagens estão óptimas e, mais uma vez, estamos na vanguarda.
Achei muito simbólica a navegação dos barcos - com as velas feitas bandeiras drapejando ao vento e música de fundo a ajudar - rumando ao futuro e a novas descobertas.
Futuro que - se dependesse da arte, engenho e voluntarismo da alma navegante que aos portugueses coube em sorte ou souberam construir - nos poderia sorrir como um abraço que se dá fraternalmente.



Pintura de Luís Delgado


Infelizmente não tem calhado assim.
O que nos tem calhado na rifa - por uma surpreendente vontade de uma maioria ainda assim minoritária - são aqueles que dos barcos e da navegação apenas lhes interessa, quais ratos de porão, a despensa de víveres, as comissões de “serviço” e o saque.
Seja no Estado ou nas empresas o clientelismo impõe reciprocidades para que não surjam retaliações e a grande farra possa continuar.
Mas não convém (não queremos, nem podemos) desanimar e, portanto, não será aí que nos iremos deter.
Será muito melhor e animador focarmo-nos e realçarmos o bendito sortilégio desta nossa velha terra e das suas gentes - crianças, jovens e menos jovens, homens e mulheres - que continuam a renovar-se e a maravilhar-nos em iniciativas culturais que nos enriquecem e ajudam a construir.
Não haverá muitas terras assim.
Não sei, digo eu.



Fotografia de Carlos Baptista

Desde o Corso de Carnaval, à Feira Medieval (com mais uma edição aí à porta). Da Feira do Livro (uma das mais antigas do país) aos Festivais de Folclore. Da Bienal de Pintura (em homenagem a um dos grandes dinamizadores culturais do concelho de seu nome Joaquim Afonso Madeira), às Feiras de Artes e Artesanato. Dos Festivais que expressam e celebram a multiculturalidade e completam o arco-íris de um Movimento Associativo rico e diversificado, aos Artistas Plásticos e Fotógrafos, Escritores e Poetas. Dos “Encontros” que promovem a reflexão em torno das Artes (temos à porta os “Encontros de Primavera 2013) a uma Oficina D’Artes e à Escola Aberta Agostinho da Silva. De um Grupo Coral que, ao longo dos anos, conta com centenas de actuações em todo o país e também já no estrangeiro, aos inúmeros grupos musicais que ora surgem ora esmorecem, ora ressurgem em novas tentativas de encontrar expressões musicais por jovens que procuram emergir desta realidade cinzenta. Já tivemos Rádios Locais (a “Rádio Tejo” e a “Rádio Opção”), temos agora a Alhos Vedros-TV.
A recusa ao fechamento, a necessidade de abertura ao exterior, a vontade de comunicar com o mundo.
Que mais estará para nascer hã?

(Gostaríamos muito fosse possível o ressurgimento de uma Banda Filarmónica já que os sonhos por vezes se concretizam e é deles que nasce o futuro.)

E a gente, aqui a viver.
A fazer e a participar da história diariamente, mês após mês, ano após ano…
Inquieta e sedutora vila antiga que desígnios te fadaram, que ventos te animaram e moldaram assim?
Curiosa pelo saber, desenfastiada no realizar, espécie de Terra do Nunca onde os sonhos não envelhecem e os olhos se escancaram para melhor ver e entender.

Será a terra que dita os homens ou serão os homens que polenizam a terra?

São, pois, de regozijo e orgulho estas palavras, escritas à luz do brilho que se nos acende no olhar e nos requisita para parabenizar os artífices de mais este projecto que já é uma realidade: a ALHOS VEDROS TV.

                                                                                                                                                            
Texto; Manuel João Croca




sábado, 23 de março de 2013

Azulejaria Artística - Luas Musicais





Lua Punk

Luís Cruz Guerreiro
www.azulejariaguerreiro.com


sexta-feira, 22 de março de 2013

Versículos



Os sonhos
são outros mistérios
formas de ser,
momento de vida.
Etéreos.
Linguagem dos pássaros.


Luís Santos


quinta-feira, 21 de março de 2013

D'ARTE - CONVERSAS NA GALERIA (2ª. SÉRIE)

O CÂNTICO DOS PÁSSAROS PINTA O CÉU
 


CAROLA JUSTO

Acrílico 50x50
 

quarta-feira, 20 de março de 2013

A Quinta da Graça












No próximo ano, 2014, decorrerão as comemorações dos 500 anos de atribuição do Foral a Alhos Vedros, pelo Rei D. Manuel I. Foral é a carta que define a existência jurídico-administrativa de um concelho, limites territoriais, obrigações fiscais, etc. Assim, como que anunciando o início das comemorações do próximo ano, fomos à procura de sinais da história que, de alguma forma, nos permitam viajar o tempo, mesmo acreditando que nem antes nem depois, todo ele é um corpo que se estende e respira. Disso mesmo dão conta estas fotos do Largo da Graça, redondezas do lugar onde talvez se tenha situado o Palácio da Graça que no início do século XV terá dado repouso a outro Rei, D. João I, e onde vieram seus filhos, a "Ínclita Geração", à qual pertencia o "Navegador"... Como se pode ver encontrámos muitas portas e fechaduras que dão acesso à Quinta da Graça, sem dúvida, um bom lugar para arqueólogos.




Lucas Rosa




terça-feira, 19 de março de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



É uma vergonha o que se passou e o que se passa e eu tinha bons motivos para temer o pior mal vi estas aves agoirentas voltarem a rondar por estas bandas. Sequer me ocorre um termo apropriado para descrever a situação pois nem a injustiça é suficiente, é algo superior a isso e de tal maneira que, mesmo um indiferente, alguém que sempre tivesse vivido sem que em alguma circunstância tivesse tomado partido, estou certa se sentiria incomodado e provavelmente revoltado com tamanha afronta que raia o indizível. É isso, o comportamento canalha dos pides é de tal ordem aviltante que mesmo aqueles que não se revejam na oposição que lhes é feita bem como ao regime que defendem e em boa medida suportam, se sentiriam enojados em face da clamorosa falta de sentido e indignidade do mesmo. Desde a primeira hora que senti francas reservas relativamente à candidatura do General Humberto Delgado à presidência e a campanha que, para isso, levou a cabo. Perguntava-me e pergunto-me como poderíamos confiar num homem como Salazar que já provou à saciedade estar alapado ao poder no pressuposto de se achar o guia providencial da sociedade portuguesa, missão, malfadada, direi eu, a que só a morte poderá pôr termo. Como esperar então que estas eleições não fossem fraudulentas e os homens da situação aceitassem de ânimo leve e de boa fé saírem derrotados do escrutínio e, por consequência disso, virem a ser arredados dos mandos e das mordomias que têm nas mãos? Poderia alguém com bom senso esperar honestidade de quem sempre revelou comportamentos tão repugnantes para com aqueles que se lhe opõem? Para mim, as respostas nunca deixaram de ser claras e precisas e mais uma vez acabámos por ter uma daquelas situações em que das boas intenções decorrem os resultados mais desastrosos. Como se poderia ter feito a coisa, não sei, mas era certo e sabido que as forças do regime iriam tirar partido da exposição que o envolvimento provocou para identificarem e prenderem mais uns quantos rostos entre aqueles que, no seu entender de zelotas sem escrúpulos, lhes causam problemas. Tenho que aceitar a simplicidade da observação do Artur que, perante tudo o que aconteceu, se limitou a dizer que se fez o que tinha que ser feito, de outra forma, ninguém teria concorrido e ter-se-ia perdido uma oportunidade para mais que denunciar o mundo de injustiça em que vivemos, manter viva a chama da esperança de lutar por um país melhor e mais livre. Neste sentido, vejo-me a concordar que algo teria de ser feito e alguém teria que avançar apesar de todos os riscos conhecidos. Mas sem que saiba explicar porquê e, repito, como, faltou a salvaguarda do depois; isto é, a certeza que haveria uma retaliação por parte da polícia política e tenho sérias dúvidas que isso tenha sido feito ou simplesmente ponderado. Custa-me um pouco ouvir a explicação do Quico, segundo o qual, comparando o sucedido com uma guerra, não há como fugir à realidade de ter que haver baixas. É uma crueldade que tenha que ser assim e ainda mais quando aqueles que caem estão inocentes em relação ao decurso dos conflitos, como foi o caso do que se abateu sobre nós. Bem que eu tive os piores pressentimentos assim que soube que uns pides tinham abordado um dos nossos operários que dois ou três dias depois acabaram por prender. Mas jamais imaginei que veria a minha casa invadida a meio da noite e o escritório completamente posto de pernas para o ar por energúmenos e ignorantes à procura daquilo que não existe e que seriam quaisqueres provas do nosso envolvimento em toda a movimentação de massas e de protestos que se desenrolaram a propósito da candidatura em causa. Felizmente tive o cuidado de logo aos primeiros sinais esconder estes cadernos em lugar seguro que, a serem lidos pelas mentes perversas desses ogres, se em nada nos comprometeriam naquilo que aqui está em apreço, certamente teriam matéria abundante para que os pides nos fizessem cair sob a alçada da sua violência e, pelo modo como esbofetearam e pontapearam o Manuel à minha frente e dos gritos de aflição dos miúdos que tudo testemunharam, só por ele lhes ter dito que não necessitavam de todo aquele alarido pois poderiam revistar a casa à vontade por estarmos de consciência tranquila, tenho a certeza que muitas destas minhas palavras lhes abririam toda a ferocidade para nos obrigarem a engoli-las. Quando na quinta-feira passada prenderam o senhor Abel para averiguações e depois levaram o Zé Pedro para um interrogatório em que manifestamente usaram da máxima violência, não foi o facto de o terem deixado sair neste Domingo que me libertou da preocupação que algo mais se poderia passar, contudo nunca pensei que ainda viessem buscar o Manuel que desde há quatro dias permanece incomunicável nos calabouços em Lisboa. Ai que raiva que raiva que raiva ter visto a aflição dos meus queridos filhos gritando impotentes pelo pai, perante a selvajaria de gente sem coração. E o que vai ser do meu amor? O que vai ser de nós? Tanto o José Pedro como o Quico disseram que à semelhança do que aconteceu com o primeiro deles, não haverá outro remédio se não libertar o meu marido, assim como o senhor Abel, na medida em que nenhum deles tem ou teve a mais leve responsabilidade no que quer que fosse em toda a agitação que envolveu aquela campanha e o rescaldo que se lhe seguiu. Eu é que não tenho conseguido dormir, de coração sobressaltado pelos meus meninos que têm andado aflitíssimos com a possibilidade de os pides matarem o pai. Como é triste viver nesta impotência.

segunda-feira, 18 de março de 2013

REAL... IRREAL... SURREAL... (20)

Reclinada Nua, Amedeo Modigliani, 1917
Óleo sobre Tela 65x100

UM RAPAZ DEMASIADO NORMAL

As mulheres daquela aldeia eram todas pequenas e sem cabelo, com exceção da mãe dele. Aliás, o tamanho não era o único motivo de estranheza sempre que se falava da Silvina do Poço. A mulher, ao contrário de todas as outras, era, de facto, grande. Mas era a sua cor o que mais conversa provocava entre quem a via ou chegava a conhecer tal caraterística. A mulher era branca.Muito branca. Não de raça, mas de cor. Era mesmo branca. Branca como a cal. Apenas na ponta de cada um dos quatro dedos de cada uma das mãos tinha uma ligeira mancha acastanhada, quase impercetível. Se não fossem as oito manchas ligeiramente acastanhadas, Silvina do Poço seria completamente branca, não só de raça mas também de cor.
Em suma, a Silvina do Poço era mesmo muito branca, era mais alta que todas as mulheres da aldeia e tinha apenas quatro dedos em cada uma das mãos. E, tal como todas as outras mulheres daquela aldeia, não tinha cabelo e, por isso, não se sabia de que cor este seria se fosse de uma cor qualquer.
Ele, o filho, era um rapaz normal, com excepção do facto de ser ele. Isto é, de ser ele, o filho da Silvina do Poço.
Essa condição trazia-lhe algumas situações curiosas. Por exemplo, quando ele, o filho da Silvina do Poço, começou a frequentar a Escola da vila, toda a gente comentou: o miúdo até era coradito, tinha dez dedos, não era alto nem baixo e, por ser rapaz, tinha cabelo.
Mais tarde, o pai da sua primeira namorada, impôs como condição para autorizar o namoro, vê-lo de perto durante oito dias, tempo que entendeu ser necessário para verificar as mãos do rapaz, tendo determinado um dia para cada um dos dedos. Este tempo foi posteriormente acrescido em dois dias, uma vez que, para surpresa do homem, o filho da Silvina do Poço não tinha manchas e, pior ainda, tinha dez dedos. O pai da rapariga achou então que o rapaz não era merecedor da sua confiança… afinal, era sua obrigação ter apenas oito dedos, como a mãe. A rapariga acabou, por isso, o namoro, e o filho da Silvina do Poço teve o seu primeiro desgosto de amor.
Mas o pior veio depois. Chegando à idade, o rapaz foi às sortes e, quando voltou para a aldeia, vinha triste e cabisbaixo. Tinham-lhe exigido um atestado qualquer, pois alguém teria levantado a suspeita de que ele não era filho dela, embora ela, a Silvina do Poço, estivesse convencida que sim. Eu não sei, mas, na verdade, o pai dele era o Pataco, o que vendia a água às mulheres da aldeia e que toda a gente dizia que era muito mulherengo. Eu, já me vim à cabeça que ele podia muito bem ter traído a mulher. Coitada! Portanto, o rapaz, às tantas, até nem era filho dela. Fica a dúvida…
O suposto filho da Silvina do Poço tinha-se convencido que ia à tropa e quando voltou à aldeia nunca mais pareceu o mesmo. Deixou até de falar… de sorrir…
Um dia saiu muito cedo e nunca mais voltou.
Mais tarde, encontraram-no num poço velho. Morto, tal como o pai da Silvina.
O rapaz matou-se sem razão. Era mesmo filho dela.
Como provou ao morrer.
Afinal, ele era mesmo filho da Silvina do Poço, assim chamada por causa do pai.

Maria Teresa Bondoso

domingo, 17 de março de 2013




CRÓNICA DE UM AMANHECER DIFERENTE


Como o em volta se foi desertificando, povoou-se o interior com gente.
Com paisagens e cores, alegrias e dores, medos e outros sabores.
Movimentos reflexivos, meditações antigas gravadas na película branca e preta da memória-consciência, vontades, desejos e, gente, sempre mais gente chegando.
Gente chegando de diferentes maneiras.
Uns em algazarra de bebedeira, outros num roçagar de tecido fino.
Uns sorrindo num abraço, outros com intenções mal clarificadas.
Uns em pose de guerra na ganância e desembaraço, outros em grande paz com pão, flores e palavras cantadas.
Uns com vontade de construir coisas, outras sem vontade nenhuma, desiludidas, cansadas, retraídas no medo-medo ou no medo de serem utilizadas.
Uns traziam crianças, outros vinham com mulheres, outros, ainda, sozinhos chegavam
Ah, depois chegou também um cão.
Chegaram, apresentaram-se ali, e eu pensei: vou acender uma fogueira e sentar-me com todos à volta do fogo.
E acendi a fogueira.
E todos – todos que eram eu e eu que era todos - se sentaram menos um que estava muito agitado e permaneceu de pé.
E todos começaram a falar do ao que vinham, do que queriam e do que não queriam.
Passado um tempo, o que estava de pá, acabou por se sentar também.
O cão, vim a saber, chamava-se To Be.
Um cão com nome em inglês?
Fiquei sem saber porquê porque nem sequer perguntei.
Foi assim que começou a construção da paisagem que queríamos habitar, da terra que queríamos semear.
Continuámos a conversar no suceder das horas.
Cada vez mais calmos, tranquilos e convencidos que o futuro estava nas nossas mãos.
Quando um galo cantou anunciando a alvorada, ainda a fogueira ardia e a conversa continuava.



Manuel João Croca



Quadro de Luís Delgado (óleo sobre tela)
Colecção particular

sábado, 16 de março de 2013

Cargueiro



A corda bamba da saudade
Ilumina a monótona sensação,
A vida navega com a idade
E na corrente, sagrada baila a ilusão.

Existe-se ao desbarato,
A vida é uma feira onde tudo é comprado
É um navio carregando um contrato,
De saudade pelas amarras do fado.

Elétrica sabedoria em modo presente
Jorrando dos umbrais ao convés,
Olhos de negrume em sol poente,
O nevoeiro é eterno e de futuro as marés.

Homem ao mar!! E o desespero tripula.
A doca mais próxima é infinita,
A bóia encrava, o pânico flutua,
Lá se eleva o homem com a bóia á cinta.


Diogo Correia

sexta-feira, 15 de março de 2013

Livros de África


TOMAZ VIEIRA DA CRUZ (1900 – 1960)


“… a homenagem a um poeta que morreu é decorar-lhe os versos!”. Frase sábia de António Manuel Couto Viana e que bem poderia constar no epitáfio de Tomaz Vieira da Cruz. Os seus versos pertencerão para sempre à memória de Angola e da lusofonia. Nasceu em 1900 em Constância onde, por coincidência (ou não), foi a terra onde também nasceu Luiz Vaz de Camões (dizem…), mas foi em Angola que viveu grande parte da sua vida. Faleceu em Lisboa em 1960 mas, como último desejo, pediu para ser sepultado em chão angolano, a terra por quem se apaixonou e onde nasceram os seus filhos. Assim aconteceu e hoje repousa em Luanda no cemitério do Alto das Cruzes.
De um pequeno livro (relíquia minha salva de uma inundação em Luanda!) intitulado “POESIA ANGOLANA DE TOMAZ VIEIRA DA CRUZ (ANTOLOGIA POÉTICA)”, publicado em 1961 pela CEI/Casa dos Estudantes do Império, com capa de Neves e Souza e selecção e prefácio de Mário António, que aglutina três dos seus livros de poesias, “Quissanje – Saudade Negra” (1932), “Tatuagem” (1941) e “Cazumbi” (1950), transcrevo aquele que será, talvez, o seu mais belo e expressivo poema, deixando no ar uma pergunta: para quando uma reedição da obra deste poeta tão importante?

COLONO
A terra que lhe cobriu o rosto
e lhe beijou o último sorriso,
foi ele o primeiro homem que a pisou!
Ele venceu a terra que o venceu.
Ele construiu a casa onde viveu…
Ele desbravou a terra heroicamente,
sem um temor, sem uma hesitação,
- terra fecunda que lhe deu o pão
e lhe floriu a mesa de tacula*…
Mas quando olhava a imagem pequenina
- Senhora da Boa Viagem -,
que a mãe lhe pôs ao peito à hora da partida,
o Homem forte chorava…
Foi arquitecto e foi também pintor,
porque pintou de verde a sua esperança…
Esculpiu na própria alma um sonho enorme,
por isso foi também grande escultor!
Foi genial artista e mal sabia ler!
O que aprendeu foi Deus que o ensinou,
lá na floresta virgem, imensa catedral,
onde tanta vez ajoelhou!
Viveu a vida inteira olhando o céu,
a contar as noites
da lua nova à lua cheia.
E o sol do meio-dia lhe queimou a pele,
o corpo todo e até a alma pura.
Foi médico na doença que o matou,
ao homem ignorado e primitivo
que derrubou bravios matagais
e junto deles caiu
como caem árvores sacrificadas
à abundância dos frutos que criaram…
E a primeira mulher que amou e quis
foi sua inteiramente…
E era negra e bela, tal o seu destino!
E ela o acompanhou
como a mais funda raiz
acompanha a flor de altura
que perfuma as mãos cruéis
de quem a arrancou.
………………………………………………………
Foi o primeiro em tudo,
na dor e no amor,
na honra e na saudade,
porque nunca mais voltou…
E nas terras de toda a gente
e de ninguém…
- estranha criatura! –
… foi sua também
a primeira sepultura!

Tacula – árvore africana de cor avermelhada.

Tomás Lima Coelho